quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Segundo turno

Segundo as runas na leitura da bruxa,
Os juros esdrúxulos rumo ao cume e os números voluptuosos emolduram as urnas
O matuto impune perdura qual abutre no púlpito
E o cardume de gatunos corruptos triunfa
Juras na tribuna figuram qual recursos de conduta
Abundam calúnias, pedregulhos, macumbas
O orgulho chafurda no perjúrio da bússola sem gume
Nenhuma culpa, nenhum escrúpulo
Afundam a cultura e o rumo
Por costume, pulsam perguntas, dúvidas, repúdio, repulsa
O futuro madruga soturno sob nuvens plúmbeas
Mas segundo Antunes, o pulso ainda pulsa.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Janela

Lá adiante, o olhar a partir do balão
Cá dentro, a clausura de freira
Fora, o pé que chuta a porta
Aqui, os olhos paralisados na barata
Ali, o focinho do rato pra fora do bueiro
E aqui, a escuridão sem legendas
Ao fundo, o passeio com Platão
Aqui dentro, a estrada sem mapa
Ao longe, a placa traseira do carro encolhendo
Fechada, a mão na mão do amigo
Na superfície, o herói sem escudo
Por dentro, o vão entre o coração e a boca do estômago
Ao longe, música que aquece a alma
E aqui, a galinha com o pescoço destroncado
Fora, os ingredientes que ainda não são bolo
Na intimidade, um olhar de garantias
É um torno que esmaga o coração
E um bilhete de loteria no bolso da calça

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Aliterando P e B

Nós partimos aboiando
Na bota, barro
Na aba do chapéu, pó
No campo plantado, poeira
Sapoti, goiaba, cambucá, jenipapo, mangaba. Podre, parecendo pedra.
Apeamos dos potros a repousar a boiada.
Ali no acampamento, rabisco de bezerro
Pretérito de boi
Nas bezerras, úberes parecendo peroba
Por perto, aboletados, urubus e répteis
Expulsos o pardal e a pomba-rola.
A tropa de burros porta sobras, pinga, tempero, carabina e chumbo. Só.
Habitação não há.
Sem sabão sem sabonete. Suor.
Os capangas são só rebotalho.
Sem apologia da súplica cabocla
Também sem roubo e sem briga.
Sem rapsódia, sem rapto das Sabinas
E nós abestalhados, abilolados, aborrecidos.
Tem vez que dá apetite de empunhar a espingarda
Dar uns pipoco de bala de prata. Sem rubor, dar o bote, o rebote.
Abordar, aborrecer, irromper.
Romper com o perpétuo, com os vampiros, os patronos, os crápulas
Os pernósticos pastores, rabinos, padres
Com a biografia pré-cambriana que nos embalou
Replicar, correspondendo à reputação do pobre diabo
Substituir obsolescência por compromisso
Preponderar.
Resplandecer a poder de plumbum. Por que não?
Pois não, pois sim, pois é.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Aliterando P

Um estampido no parque
Policial apressado
Pessoas apavoradas
Perguntas imprecisas
O suspeito aprisionado
Emparedado pelo povo
Implorava o perdão dos passantes
Apresentava porquês sem porquê
Sob a pilastra, uma panela, um pombo e uma espiriteira
Patético.

domingo, 5 de setembro de 2010

Uns empilham tijolos, outros constroem catedrais

O João pinta a nossa casa desde que eu era pequena. Mineiro, ri muito e fala pouco. Pinta as paredes, portas, muro. Era casado com uma empregada, a Luzia. Foi assim que a gente se conheceu. Todo ano ele está lá. E não só pinta, mas também desentope calha, pendura quadro, mata rato, joga veneno para cochonilha na jabuticabeira. Sempre, se a gente fosse viajar, deixava o João pintando a casa. E se a gente fosse pintar a casa, aproveitava pra viajar. Ele toma conta do cachorro, acende a luz da frente, água as plantas. E todo ano, visita o túmulo do meu pai no dia dos pais.

Um dia, sobre a mesa, havia o folheto de uma exposição do Volpi. Acho que foi no ano passado. João apontou para a ilustração e, meio desinteressado, disse: Volpi. Eu perguntei se ele o conhecia. Ele disse: Claro, mas você não deve conhecer, pois ele já morreu. Achei engraçado e falei do grande pintor, de seu trabalho importante, seu reconhecimento internacional. João riu desdentado e falou: Eu trabalhava com ele. Incrédula. A gente pintava murais. Fizemos um bonito no Hospital São Luiz Gonzaga. Era estranho, pois ele é muito gozador, mas parecia falar sério. É claro que eu fui consultar o Dr. Google. E lá estava. Pintura de dois murais na ala da maternidade do hospital. 1949. Voltei. Explica isso aí direito! Ele fazia uns murais e eu ajudava. Ele disse que ia me ensinar o mais importante, que era misturar as tintas. Eu ia poder pintar meus próprios murais. Nessa época, eu fui chamado pra trabalhar numa empresa com carteira assinada, pra pintar paredes. A Luzia estava pra ter o Romildo. Fui embora. E tem mais uma coisa: o velho queria que eu torcesse para o Milan e você sabe que eu sou corintiano. Com isso não se brinca.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Água (ou Num Laivo de Benquerença)

Ora vem como goteira
Às vezes, qual tempestade
Tem dias em que é dor pouca
Mas pode ser rasgo na alma

Gota a gota, enche o peito
Castiga como enxurrada
Aí, dos olhos escoa
É enchente, é chuvarada
Vai, arrasta, esfarrapa
Não escolhe afeto nem mágoa
Leva tudo pela encosta
Só deixa terra arrasada

Com pouca desfaçatez
Você vem ver o que resta
Erodido, seco, mirrado
Seu riso árido qual vala

E eu peço a você que chova
Que garoe, que chuvisque
Quem sabe um leve borrifo?
Imploro que acabe o estio.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Engolesapos

Era protagonista. Foi a última a se unir ao grupo já de mãos dadas. Os olhos pintados de azul combinavam com o vestido de princesa. Os olhos não miravam o público. Em sua cabeça, além da coroa, uma frase martelava – Yes, he is a frog and I invited him to live here in the castle – justamente o ponto onde se deslindava o emaranhado da trama. Ao seu lado, o menino vestido de sapo sorria e acenava para a mãe. Claro, ele tinha se lembrado de todas as suas falas. Sim, ele é um sapo e eu o convidei para morar aqui no castelo – justamente quando mais precisava lembrar. Deu branco. A voz de sua tia ficava repetindo por cima da frase – relaxa, pois a gente faz bobagem desde que nasceu e vai continuar assim até ficar velhinha; a gente acerta tantas outras coisas. Não adiantava nada. Ela tinha o resto da vida para fazer bobagens e aquela era a pior de todas as horas. Não importava se havia legendas no fundo do palco, não importava se a coordenadora do curso ia dizer que tudo bem.           Ensaio,              ensaio,        decoreba,    ensaio com figurino, convite à família, um livro para usar em cena, trouxe as meias? maquiagem cabelo prende bem a coroa estamosatrasadasnãoesqueceo sapatofiquemaínofundoquietinhosqueaplateiatálotada Yes he is a frog... merda. Merda!

Ela segurou a mão do menino-batráquio sem muita convicção. Os olhos pregados ao chão. As costas custaram a ceder. Os ombros se curvando para a frente como folha em fim de incêndio. Os lábios delatores recusaram os dentes. A cabeça coroada enfim tombou.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Agramatismo* anfractuoso**

Ora, é porque a gente mora numa terra cheia de brasileiros que falam a língua portuguesa, calculam com algarismos arábicos, adotam o alfabeto romano e o sistema métrico decimal. É porque a nossa música mais popular descende de uma fusão entre a valsa vienense e o lundu africano. Também porque nossa culinária é – com o perdão do trocadilho – um caldeirão salpicado pelos seis continentes. E nosso dicionário é sempre mais grosso que os demais. Inesperado seria esse povo viver seco de criatividade. Isso nunca! Não um povo que abrange Stanislaw Ponte Preta, capaz de versos como “...E foi proclamada a escravidão / Assim se conta essa história / Que é dos dois a maior glória / Dona Leopoldina virou trem / E D. Pedro é uma estação também / O, ô , ô, ô, ô, ô / O trem tá atrasado ou já passou”. Mas contenha a emoção, cara Noemi. Tem mais. Sempre tem mais.

Historicamente, os compositores brasileiros adoram fundir letra e música sem jamais economizar no verbo. Ary Barroso já nos brindou com “meu mulato inzoneiro”. Talvez o tal mulato tivesse preguiça, estivesse zonzo ou uma mosca da malária rodeasse sua orelha. Mas que importa a minúcia na descrição do pobre diabo? Ary tentava exprimir seu amor por um povo e uma nação. De fato, nunca haveria palavra que bastasse. E a Aquarela se perpetuou, inzoneira e tudo. Não me venha com Jakobson e a teoria de que isso tem função explicativa. Isso é onomatopéia!

Aí, veio o Ataulfo Alves, dizendo à pobre mulata assanhada que a pretoria resolvia a questão. Altamente preconceituoso. Em tempos mais contemporâneos, o incauto compositor sempre teria a chance de corrigir o termo para “afrodescendentía”, embora houvesse espaço para a defesa, parafraseando Drummond e afirmando que isso não seria rima, seria solução. Muitos certamente iam concordar.

Mas Ary Barroso voltava à carga em Camisa Amarela, afirmando que “Depois o encontrei num café zurrapa do Largo da Lapa”. A gente fica com a sensação de que o lugar não devia ser luxuoso. Talvez um ambiente mais singelo e pouco frequentado por pessoas que tivessem família. Buscamos o resto da estrofe, desesperados por algum entendimento. E ele vem. “Folião de raça bebendo o quinto copo de cachaça”. Não, de fato não era luxuoso. Mas a estrofe se arremessa na redundância de um breque: “Isso não é chalaça!”. Ah, bom, agora tudo se esclareceu: a culpa é do Torero.

Nem Arnaldo Antunes escapou. “Peste bubônica/ Câncer, pneumonia / Raiva, rubéola / Tuberculose e anemia / Rancor, cisticircose/ Caxumba, difteria/ Encefalite, faringite/ Gripe e leucemia...”. Como que por milagre, o pulso ainda pulsa. Mas eu estou pegando uma... uma... hipocondria.

Com o samba do crioulo doido regulamentado, desta vez sem trocadilhos rudes, Gil tinha carta branca para pegar a emblemática “Pelo Telefone” e compor versos como “Um barco que veleje / Que veleje nesse infomar / Que aproveite a vazante da infomaré / Que leve um oriki do meu orixá/ Ao porto de um disquete de um micro em Taipé...”

Por mais que isso seja deliciosamente contraventor, tudo sempre podia piorar. Quem manda ter tantas palavras e tão poucos professores de oratória? Ou otorrinolaringologistas? Há casos em que a gente não entende o que o intérprete diz, fato que pode gerar neologismos ou uma confusão dos diabos. Como quando um amigo insistiu que o mesmo Gilberto Gil compusera “Sapo butimilho é gente, o sol nascente é tão belo/ Sítio do Picapau Amarelo”. Ou eu mesma, crente que, em “Como nossos pais”, Elis Regina cantava “mas é você que é malpassado e que não vê que o novo sempre vem”.

Com tudo isso, como não me apaixonar pelo Chico que, sócio-cotista da língua pátria, ainda faz um mexidão com o francês, “Mata-me de rir, Fala-me de amor / Songes et mensonges Sei de longe e sei de cor / Geme de prazer e de pavor / Já é madrugada / Acorda, acorda, acorda, acord'accord”.
Acorda, amor!

* s. m. 1. Vício de pronúncia que consiste na omissão de fonemas. 2. Impossibilidade mórbida de expressar as idéias com sentido
** adj. Cheio de saliências, depressões ou sinuosidades irregulares

segunda-feira, 7 de junho de 2010

De outro planeta

Do nada, um marciano apareceu aqui em casa dizendo que queria ser meu amigo. Perguntou quem era o nosso líder. Eu logo disse que é a minha mãe, mas ela não está. Que está no trabalho, só volta à noite e me mandou nunca contar isso a ninguém.

Aí, ele quis investigar tudo. É isso que os marcianos fazem depois que dizem que querem ser nossos amigos e descobrem quem é o nosso líder. Para que serve isso? E aquilo ali, o que é? É claro que ele conhecia tudo que é eletrônico; nem precisei explicar – celular, WII, forno de microondas, IPod, Kindle. Ele é extraterrestre e na terra dele tem tudo isso e ainda tem teletransporte, lição de casa que aparece pronta pelo comando das ondas mentais da gente, banho automático enquanto a gente brinca e pílulas de salada verde.

A primeira coisa que chamou sua atenção foi o capacho. Eu tentei explicar que servia para limpar os pés quando a gente chega da rua, mas ele não sabia nem o que era rua, muito menos o que era pé. Aí, cismou com as taças de cristal na prateleira. Eu falei pra ele não mexer naquilo que o nosso líder matava ele. Foi fuçar numa fotografia da minha irmã e as amigas dela na praia. Perguntou se elas estavam presas lá dentro e se eu queria que ele soltasse todo mundo com um raio Feisertm. Eu falei que era melhor não, pois ia escorrer água salgada em todo o carpete e nosso líder podia se tornar violento. A essa altura, meu cachorro já estava cheirando a canela extraterrestre dele. Eu me adiantei e disse que aquilo era um cão movido a baterias de biscrok e que estava na hora de levá-lo pra fazer xixi na rua. Para não deixar um alienígena sozinho em casa, que eu não sou bobo, é claro que levei o ET junto. Pelo caminho, ele retrucou que eu estava tentando enganá-lo e que, na verdade, nosso líder era o cachorro, pois ele andava na frente e eu tinha que seguir, ainda por cima preso por um couro amarrado ao meu pulso. E limpando toda a sujeira que ele ia deixando. Pois eu apontei o dedo pra ele e lhe disse que, se ele pensava que o cachorro era o nosso líder, era porque não conhecia minha mãe. Quando a gente voltou pra casa, o bicho pegou. Ele quis brincar de ser o líder, talvez pensando em governar o mundo. Eu falei que já tinha gente demais querendo o cargo, mas ele pegou a coleira do Ziggy que tinha ficado lá na porta, amarrou no seu pescoço e prendeu a guia no meu pulso. E saiu correndo pela casa e me puxando. E... quebrou o vaso... Não, minha mãe não vai acreditar nessa...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Elevador

Um corredor frio qual geleira, estreito e longo, móveis antigos, espelhos cobertos disfarçando almas entregues à desvida, um cheiro acre e úmido com a memória de anos de mágoa e desesperança. Passos esmagados pela escuridão. O mordomo funesto com seu dedo descarnado indicando o elevador, quase uma ordem. A porta fechada num átimo. O ar pouco no espaço exíguo. Subida rápida, parada súbita, a porta aberta. No hall, espectros. O som gutural de sua fala perdido naquelas gargantas mortas. Acenos desesperados, esgares, talvez um alerta, um pedido de socorro. A porta fechada com violência, antes do breve esboço de reação. Ânsia de vômito, respiração acelerada, mãos úmidas, suor escorrendo pelas têmporas. Olhos tateando na escuridão perversa. Mais um tranco. A queda veloz. Um baque surdo e, talvez, o fundo. Escuro. A voz se recusando a sair, agarrada às entranhas. Nova queda. As mãos em busca de algo em que se agarrar. Nada. Uma descida desenfreada até o fundo do fosso. Um estrondo e as portas abertas, quase escárnio. Lá fora, sol e calor desmentindo o ocorrido. Como é que alguém vem até aqui e deixa seus tostões, alegando se divertir?!

Espera aí! Isso é uma cena do Disney World. Lugares não oprimem. Basta acender a luz, afastar as paredes, abaixar o volume. Mas como tirar o que marcou no passado? A enchente, as baratas, o palhaço do circo, o terremoto, a quebra da bolsa, a professora de matemática, os colegas violentos, o homem do saco, a injeção, o tsunami, a primeira paixão não-correspondida, o pedido de aumento de salário, a recusa da menina em dançar que o obrigou a atravessar o salão sozinho em direção ao riso cruel dos amigos, o parto natural, o discurso no dia da formatura, a blitz com uma ponta, o gol desperdiçado, a morte do pai, o assalto, o casamento desfeito, o pico de inflação, o acidente de carro, as provas escolares, a falta de respeito pelos direitos humanos, o tombo de bicicleta, a tentativa de estupro, o roubo da poupança, as almas penadas, a injustiça, o vestibular, o beijo na avó no caixão... Afora os desastres naturais e as baratas – é claro –, o que apaixona e apavora são as pessoas e as relações entre elas. Relações de poder e relações de confiança. E sempre que uma das partes rompe o contrato, o chão desaparece. Aí sim, a gente cai, como num sonho mau. Descrente, oprimido, inerte.

domingo, 21 de março de 2010

Alianças

- Opa! Já te trago a maquininha. É débito ou crédito?

- Débito. Nunca se sabe o que acontece no mês que vem. O serviço já está incluso?

- Sim, muito obrigado... Adorei a sua bolsa.

[Adorei sua bolsa?!!] Meus olhos preconceituosos correram para sua mão, esperando ver sei lá o que. Encontraram uma aliança de noivado. Que papo gay! Mas agachado ao lado da minha cadeira, ele prosseguiu sereno, indiferente a minha investigação muda, as mãos falando tanto quanto a boca.

- Todo mundo diz que está em busca de sua individualidade, mas fica tentando ser igual aos demais. Se você pensar bem, hoje em dia, todas as bolsas são parecidas.

Ele divagava sobre formatos e tamanhos de artefatos de couro, mas as peças em si importavam pouco, milhas aquém de suas conjecturas. Era o Claude Lévi-Strauss da moda. Refletiu sobre essa angústia que, expressa em palavras, parece ferir a alma das pessoas, mas que desaparece nas ações. Ele entendia que, no fundo, todos buscam pertencer a algum grupo, qualquer grupo; e que sentir-se confortavelmente estranho aos demais não é para qualquer um.

Comentei que é discreta a separação entre esquisitice e transparência, honestidade, abertura – o que hoje chamam de atitude. E que o primeiro olhar é para as diferenças, muito mais do que para as semelhanças. Sua juventude dissipou-se em entendimento.

- Ah! Como a Lady Gaga. Quando ela apareceu, todos achavam que era estranha. Hoje, é aceita, pois age conforme a sua natureza. Por outro lado, a Madonna está exagerando, soa falso.

Com exemplos singelos, ele descrevia um mundo. Seus dedos tamborilavam na mesa, como se suas palavras demandassem mais credibilidade. O pouco movimento do restaurante permitia que ele continuasse ali abaixado, em reflexões. E ele ecoava essa mesma transparência que suas palavras rascunharam, expressando a leveza de sua alma.

Portando mais uma lição de vida na tal da bolsa, levantei-me para ir embora. Estendeu-me sua mão e, com ela, algum outro tipo de aliança. “Volte sempre.” Sua voz trazia mais do que uma despedida formal. “Meu nome é Rony.”

terça-feira, 16 de março de 2010

Trampolim

Agora, eu pulo.

Um salto perfeito, um daqueles bem difíceis que eu venho treinando há tanto tempo, cheio de volteios, um duplo mortal carpado e eu mergulhando quase sem espirrar água. Quando eu fizer aquele movimento com precisão, ao entrar de cabeça na água, todos vão soltar a respiração que vinham prendendo desde que eu saí graciosamente do trampolim e respirar aliviados e sorrir antes de explodir de emoção por ter visto o salto mais perfeito da história dos saltos ornamentais, é sim, e os juízes extasiados vão agitar os cartazes com a nota 10 e me carregar nos ombros até o Carro de Bombeiros para eu percorrer as ruas do centro da cidade envolta na bandeira, acenando para as multidões, e toda aquela serpentina voando como em final de Copa do Mundo com a música do Ayrton Senna tocando bem alto – tã tã tã, tã tã tã – e o chatão do Galvão Bueno berrando ÉéééduBrasiiiiiilllllll. Ah, eu vou extrair aplausos até dos pentelhos da 7ª B, daquelas colegas que riem de mim durante o treino, da babaca da minha prima Michele e da metida da tia Dalva que a inscreveu no curso de modelo e manequim (ai, meus sais!!); talvez até um Oh! do Olavo e um sorriso aprovador da minha mãe – aliás, se ela não sair daqui hoje dizendo que estou desperdiçando meu tempo precioso e o seu dinheiro precioso, já vai ser lucro, além de ser novidade absoluta, é sim.

Mas se eu fizer o primeiro movimento imperfeito, é certo que vou errar a pontaria, torcer o corpo para o lado invertido, dobrar as pernas, soltar o diafragma, dar mau jeito nas costas, urrar de dor em pleno ar, desmanchar esta merda de coque cheio de grampos que estão perfurando meu couro cabeludo e... e... e tomara que eu bata a cabeça na borda com muita força, é sim – se eu errar o primeiro movimento, vou mirar direto com a minha testa dura na beirada da piscina e acabar com tudo – com a risada das minhas muy-amigas, com a tontice da Michele e da tia Dalva, com o Oh! que nunca será pronunciado pelo Olavo e, é claro, com o olhar de desaprovação da minha mãe, que sempre vem acompanhado de um meneio de cabeça que esconde um “eu te avisei” e é seguido daquele mesmo velho e interminável discurso durante os quinhentos anos que demora para chegar daqui na droga da minha casa.

Pensando bem, se eu sair pelo menos com a cabeça sangrando e merecendo uma visita ao pronto-socorro e uns pontos, vai ter menos motivo para as risadinhas e os comentários cochichados; é sim, já vou mirar na beirada da piscina de cara – nem vou caprichar no pulo, pois eu sei que vou errar aquele primeiro movimento, sempre ele... isso mesmo, lá vou eu.