quinta-feira, 17 de março de 2011

De Morte

Pronto. Era a morte que tocava meu ombro bem de levinho pra não assustar. Eu achei que era naquela hora que começava o flashback que se vê em filme. A primeira coisa que me ocorreu foi um vinil com “Chiribiribi quá quá” tocando alto numa vitrola em 45 rotações. Não era bem o que tinha em mente, mas vá lá. Acho que a gente nunca planeja esse momento com precisão. Agora vai assim mesmo. A verduga da desvida já tinha apoiado a foice numa cerca, pois notou que ia demorar. E o Ary Barroso continuava sem vacilar: “Chiribiribi quá quá, Chiribiribi quá quá...”. Aquilo parecia não ter fim. Puxei pela memória e vi que nem ao menos conhecia a canção. Talvez fosse uma mensagem! Essas coisas acontecem, provavelmente antes do túnel por onde a gente tem que seguir até ver a luz. Comecei a prestar atenção na letra:

“Pra que juiz marcar o jogo entre nós dois
se vale ‘foul’, vale ‘offside’ e bofetão;
É melhor o juiz lamber sabão;
Oh! O juiz, o juiz é um ladrão.”

Não, não. Devia estar no canal errado. Esse recado não era pra mim. Mesmo tendo nascido na terra do futebol, entendia xongas do valente esporte bretão! Ou será que a mensagem era que eu devia ter aprendido a jogar futebol? Tarde demais. Também podia ser outra coisa: quando chegasse no fim do túnel, perguntar pro Ary se nunca tinha ouvido falar em rima rica. Por via das dúvidas, memorizei esse recado. Não custava nada, já que eu estava indo para lá mesmo.

Minha mente vagava; pareceu que eu ouvia um silêncio de anjos. Não, não merecia. Era a música que começava a sumir. Pensei: Existe um Deus! Mas por falar em Deus, em vez do tal flashback, comecei a lembrar de uma piada em que o Altíssimo resolveu descer à Terra para cobrar pelo uso indevido do seu nome. Afinal de contas, Santo Antonio, São Pedro e os outros tops estavam riquíssimos só pela cessão de direito de uso de seus nomes para mercearias, igrejas, times de futebol, bairros inteiros! E Ele tinha avisado em Mandamento e tudo mais que o Seu nome não era pra brincadeira. Quando já estava com as malas prontas, São Francisco vaticinou que era melhor não, pois o que mais se ouvia por aqui era “Deus lhe pague” e tudo que o Divino ia encontrar eram dívidas.

O pior é que eu não conseguia rir. Será que não tinha entendido a piada? Pensei em contar de novo pra ver se o ritmo melhorava, caprichar na interpretação... Debruçada num mourão da cerca, a mórbida visitante, seca feito um varapau, já estava cochilando, com dor nos quartos e um calor tremendo daquela roupa preta comprida que era obrigada a vestir. Agora, eu pensava que devia ficar triste por não poder mais gozar a vida. Aí, lembrei que não tinha sido tão boa assim... Mas também não via motivos pra ficar contente por acompanhar a Danada.

O tempo foi passando e eu sentindo uma fominha. Uma pizza talvez! Saideira. Perguntei se a morte queria rachar uma pizza de calabresa e uma coca litro. Ah, e se podia financiar o lanche e me emprestar algum, pois tinha vindo despreparado. Nem uma troca de roupa, uma cueca limpa, uma escova de dente! Ela, provavelmente por problemas de fígado pelo estresse da profissão, não demonstrava o menor vestígio de senso de humor. Me lançou um olhar venenoso enquanto continuava com aquela cara de bunda sem lavar. Certamente faltava-lhe uma válvula de escape – um esporte de várzea, quem sabe? Ela só grunhia. Mas será o Benedito? Ao pronunciar esse nome, lembrei que tinha ficado com o casaco do Benê. Precisava ir lá devolver. O negão é friorento e vai me matar! Saí correndo e a morte atrás de mim. De longe, o Benê me viu, ficou branco, se benzeu e deitou o cabelo – fugiu levantando poeira. E eu atrás. E aquele ícone do fim agarrava o saiote de sua veste negra e vinha acelerada me perseguindo com suas canelas descarnadas.

Uma luz forte surgiu a minha frente. Pá! Até que enfim! Era o dono da pensão que abriu a porta, coçou o saco e murmurou “seis e meia”. Deixa eu levantar e devolver a japona do Benê antes que...

quarta-feira, 2 de março de 2011

Malandro é o Curupira, que faz Gol de Calcanhar

O leão e a leoa viviam às turras. Brigavam por causa da caça, da limpeza do covil, do banho dos filhotes.

Naquele dia, não tinha sido diferente e o leão saiu batendo a porta da caverna. Andava pela mata dando patadas em tudo que encontrava, urrando para todos ouvirem. Ela lhe dava nos nervos, mandava fazer isso, proibia de fazer aquilo. E ele posando de rei. Roar! Correu muito até se cansar. Deitou-se no galho de uma jaqueira e ficou ali parado, até que desaparecesse a vontade de extrair os pelos dela com uma pinça.

Foi então que um ratinho desavisado passou por cima do galho, carregando o butim de sua campanha num acampamento próximo. O grande felino segurou-o pelos quartos traseiros até quase esmagá-lo, embora não quisesse promover nada rápido demais, nem definitivo. Centrou todo seu ódio no pequeno roedor, gritando: “Criatura insignificante, ralé dos seres vivos, sarjeta da mata. Você é nada, só não o destruo com um dedo mínimo porque você é a escória e eu tenho nojo de tocar suas entranhas e me tornar qualquer coisa próxima de você.”

Nessa hora, o rabinho que o pequeno larápio tinha mergulhado no pote de maionese foi de grande utilidade. Espremeu-se por entre os dedos poderosos da fera imensa e correu para a ponta de um galho frágil, não muito distante. Satisfeito com sua artimanha, pôs-se a galhofar, imitando a voz do leão em sua fala miúda, dizendo: “Eu é que sou o rei da floresta. Você só tem pose, juba e”, esfregando o rabinho, completou, “patas fortes. Mas é burro feito um asno”. Desceu da árvore, correndo desembestado.

Atrás dele vinha o leão irritado e com o orgulho ferido.

Para provar sua teoria da estupidez do leão e, simultaneamente, demonstrar todo o conhecimento adquirido nos inúmeros livros que roera, o ratinho sentou-se sobre uma pequena folha no meio do lago e gritava teoremas pela metade, verbos no futuro do pretérito composto, fórmulas insolúveis, trechos da tabela periódica, nomes de minerais, capitais de países da Europa Oriental.

O leão rugia: “Quando eu te pegar, vou fazer picadinho, sua ameba tagarela!”

Desta feita, o espetaculoso sentara-se no alto de outra árvore e ria com as canjicas de fora. Às suas costas, ouviu um rosnado baixo. Era a leoa, que o comeu de um bocado.

Contradizendo a linha da ficção adotada por autores do século XXI, que afirma que todos os textos contemporâneos que abordam romances terminam em separação ou em um momento rotineiro que permite várias leituras, o casal de leões viveu feliz para sempre.