sexta-feira, 25 de junho de 2010

Engolesapos

Era protagonista. Foi a última a se unir ao grupo já de mãos dadas. Os olhos pintados de azul combinavam com o vestido de princesa. Os olhos não miravam o público. Em sua cabeça, além da coroa, uma frase martelava – Yes, he is a frog and I invited him to live here in the castle – justamente o ponto onde se deslindava o emaranhado da trama. Ao seu lado, o menino vestido de sapo sorria e acenava para a mãe. Claro, ele tinha se lembrado de todas as suas falas. Sim, ele é um sapo e eu o convidei para morar aqui no castelo – justamente quando mais precisava lembrar. Deu branco. A voz de sua tia ficava repetindo por cima da frase – relaxa, pois a gente faz bobagem desde que nasceu e vai continuar assim até ficar velhinha; a gente acerta tantas outras coisas. Não adiantava nada. Ela tinha o resto da vida para fazer bobagens e aquela era a pior de todas as horas. Não importava se havia legendas no fundo do palco, não importava se a coordenadora do curso ia dizer que tudo bem.           Ensaio,              ensaio,        decoreba,    ensaio com figurino, convite à família, um livro para usar em cena, trouxe as meias? maquiagem cabelo prende bem a coroa estamosatrasadasnãoesqueceo sapatofiquemaínofundoquietinhosqueaplateiatálotada Yes he is a frog... merda. Merda!

Ela segurou a mão do menino-batráquio sem muita convicção. Os olhos pregados ao chão. As costas custaram a ceder. Os ombros se curvando para a frente como folha em fim de incêndio. Os lábios delatores recusaram os dentes. A cabeça coroada enfim tombou.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Agramatismo* anfractuoso**

Ora, é porque a gente mora numa terra cheia de brasileiros que falam a língua portuguesa, calculam com algarismos arábicos, adotam o alfabeto romano e o sistema métrico decimal. É porque a nossa música mais popular descende de uma fusão entre a valsa vienense e o lundu africano. Também porque nossa culinária é – com o perdão do trocadilho – um caldeirão salpicado pelos seis continentes. E nosso dicionário é sempre mais grosso que os demais. Inesperado seria esse povo viver seco de criatividade. Isso nunca! Não um povo que abrange Stanislaw Ponte Preta, capaz de versos como “...E foi proclamada a escravidão / Assim se conta essa história / Que é dos dois a maior glória / Dona Leopoldina virou trem / E D. Pedro é uma estação também / O, ô , ô, ô, ô, ô / O trem tá atrasado ou já passou”. Mas contenha a emoção, cara Noemi. Tem mais. Sempre tem mais.

Historicamente, os compositores brasileiros adoram fundir letra e música sem jamais economizar no verbo. Ary Barroso já nos brindou com “meu mulato inzoneiro”. Talvez o tal mulato tivesse preguiça, estivesse zonzo ou uma mosca da malária rodeasse sua orelha. Mas que importa a minúcia na descrição do pobre diabo? Ary tentava exprimir seu amor por um povo e uma nação. De fato, nunca haveria palavra que bastasse. E a Aquarela se perpetuou, inzoneira e tudo. Não me venha com Jakobson e a teoria de que isso tem função explicativa. Isso é onomatopéia!

Aí, veio o Ataulfo Alves, dizendo à pobre mulata assanhada que a pretoria resolvia a questão. Altamente preconceituoso. Em tempos mais contemporâneos, o incauto compositor sempre teria a chance de corrigir o termo para “afrodescendentía”, embora houvesse espaço para a defesa, parafraseando Drummond e afirmando que isso não seria rima, seria solução. Muitos certamente iam concordar.

Mas Ary Barroso voltava à carga em Camisa Amarela, afirmando que “Depois o encontrei num café zurrapa do Largo da Lapa”. A gente fica com a sensação de que o lugar não devia ser luxuoso. Talvez um ambiente mais singelo e pouco frequentado por pessoas que tivessem família. Buscamos o resto da estrofe, desesperados por algum entendimento. E ele vem. “Folião de raça bebendo o quinto copo de cachaça”. Não, de fato não era luxuoso. Mas a estrofe se arremessa na redundância de um breque: “Isso não é chalaça!”. Ah, bom, agora tudo se esclareceu: a culpa é do Torero.

Nem Arnaldo Antunes escapou. “Peste bubônica/ Câncer, pneumonia / Raiva, rubéola / Tuberculose e anemia / Rancor, cisticircose/ Caxumba, difteria/ Encefalite, faringite/ Gripe e leucemia...”. Como que por milagre, o pulso ainda pulsa. Mas eu estou pegando uma... uma... hipocondria.

Com o samba do crioulo doido regulamentado, desta vez sem trocadilhos rudes, Gil tinha carta branca para pegar a emblemática “Pelo Telefone” e compor versos como “Um barco que veleje / Que veleje nesse infomar / Que aproveite a vazante da infomaré / Que leve um oriki do meu orixá/ Ao porto de um disquete de um micro em Taipé...”

Por mais que isso seja deliciosamente contraventor, tudo sempre podia piorar. Quem manda ter tantas palavras e tão poucos professores de oratória? Ou otorrinolaringologistas? Há casos em que a gente não entende o que o intérprete diz, fato que pode gerar neologismos ou uma confusão dos diabos. Como quando um amigo insistiu que o mesmo Gilberto Gil compusera “Sapo butimilho é gente, o sol nascente é tão belo/ Sítio do Picapau Amarelo”. Ou eu mesma, crente que, em “Como nossos pais”, Elis Regina cantava “mas é você que é malpassado e que não vê que o novo sempre vem”.

Com tudo isso, como não me apaixonar pelo Chico que, sócio-cotista da língua pátria, ainda faz um mexidão com o francês, “Mata-me de rir, Fala-me de amor / Songes et mensonges Sei de longe e sei de cor / Geme de prazer e de pavor / Já é madrugada / Acorda, acorda, acorda, acord'accord”.
Acorda, amor!

* s. m. 1. Vício de pronúncia que consiste na omissão de fonemas. 2. Impossibilidade mórbida de expressar as idéias com sentido
** adj. Cheio de saliências, depressões ou sinuosidades irregulares

segunda-feira, 7 de junho de 2010

De outro planeta

Do nada, um marciano apareceu aqui em casa dizendo que queria ser meu amigo. Perguntou quem era o nosso líder. Eu logo disse que é a minha mãe, mas ela não está. Que está no trabalho, só volta à noite e me mandou nunca contar isso a ninguém.

Aí, ele quis investigar tudo. É isso que os marcianos fazem depois que dizem que querem ser nossos amigos e descobrem quem é o nosso líder. Para que serve isso? E aquilo ali, o que é? É claro que ele conhecia tudo que é eletrônico; nem precisei explicar – celular, WII, forno de microondas, IPod, Kindle. Ele é extraterrestre e na terra dele tem tudo isso e ainda tem teletransporte, lição de casa que aparece pronta pelo comando das ondas mentais da gente, banho automático enquanto a gente brinca e pílulas de salada verde.

A primeira coisa que chamou sua atenção foi o capacho. Eu tentei explicar que servia para limpar os pés quando a gente chega da rua, mas ele não sabia nem o que era rua, muito menos o que era pé. Aí, cismou com as taças de cristal na prateleira. Eu falei pra ele não mexer naquilo que o nosso líder matava ele. Foi fuçar numa fotografia da minha irmã e as amigas dela na praia. Perguntou se elas estavam presas lá dentro e se eu queria que ele soltasse todo mundo com um raio Feisertm. Eu falei que era melhor não, pois ia escorrer água salgada em todo o carpete e nosso líder podia se tornar violento. A essa altura, meu cachorro já estava cheirando a canela extraterrestre dele. Eu me adiantei e disse que aquilo era um cão movido a baterias de biscrok e que estava na hora de levá-lo pra fazer xixi na rua. Para não deixar um alienígena sozinho em casa, que eu não sou bobo, é claro que levei o ET junto. Pelo caminho, ele retrucou que eu estava tentando enganá-lo e que, na verdade, nosso líder era o cachorro, pois ele andava na frente e eu tinha que seguir, ainda por cima preso por um couro amarrado ao meu pulso. E limpando toda a sujeira que ele ia deixando. Pois eu apontei o dedo pra ele e lhe disse que, se ele pensava que o cachorro era o nosso líder, era porque não conhecia minha mãe. Quando a gente voltou pra casa, o bicho pegou. Ele quis brincar de ser o líder, talvez pensando em governar o mundo. Eu falei que já tinha gente demais querendo o cargo, mas ele pegou a coleira do Ziggy que tinha ficado lá na porta, amarrou no seu pescoço e prendeu a guia no meu pulso. E saiu correndo pela casa e me puxando. E... quebrou o vaso... Não, minha mãe não vai acreditar nessa...