sábado, 26 de fevereiro de 2011

Na Moita

– Ai, que susto! Não vi que tinha alguém aí na penumbra. Vamos ficar
   bem quietos para que a onça não perceba nossa presença... Tem hora
   que é melhor se fingir de morto, concorda?
– Grrr...
– É mesmo. Dá muita raiva. Pelo jeito, essa onça já vem assustando –
   e comendo – os animais daqui há bastante tempo. A gente se sente
   castrado diante de tanta violência e impunidade.
– Arf arf.
– Entendo. Também já me cansei desta vida de fugir de predador.
   Mas sem ter competências de agressividade e reação, tudo que nos
   resta são a fuga e o esconderijo. Passamos e viver entocados,
   imundos, na escuridão, com o coração agitado e as patas trêmulas.
   A propósito, este aqui não é o meu habitat. Você sabia que eu nasci
   e me criei no circo? É por isso que ainda tenho essa tonalidade
   levemente rosé nos pelos... Gostou?
– Grrr...
– Ora, se não gostou, as regras de etiqueta ditam que basta se calar,
   sorrir e fazer um aceno com a cabeça. Não precisa tanta
   agressividade, tanta rudez animalesca!
– Uauau.
– Melhorou. Viu como é fácil agradar uma dama?
(Coça, coça, coça)
– Quer que eu te conte como vim parar aqui? Pois bem, a gente
   estava em turnê pelo interior do país – fazendo muito sucesso,
   eu devo confessar. Um dia, nosso caminhão seguia em
   velocidade ribanceira abaixo, passou por um buraco imenso e
   eu caí da boleia. Ninguém ouviu meus gritos e... aqui estou. Veja
   o meu pelo, está perdendo a cor e já está quase branco, tsc.
(Coça, coça, coça)
– Ai, pelas barbas de São Francisco! Eu, instruída, de tradicional
   linhagem de poodles, venho me ocultar numa caverna fétida e,
   ainda por cima, com um simulacro de cachorro-do-mato sem o
   menor verniz. Você não para de coçar a orelha, cheirar o pé e
   lamber as partes pudendas... Dá para melhorar os modos? Só
   um pouquinho? Que falta de touché... Além do que, o respeito
   é bom e poupa os dentes.
– ...
– Você não é de muito falar também. Escuta, lá na jungle, você não
   aprendeu nada a não ser rosnar, latir, fungar e vociferar?
– Auuuuuuuuu...
– E uivar pra lua?! Shhhh. Aí, você já passou dos limites! Cala a boca
   antes que ela te escute. Sit! Good boy. Ai, como dizia Proust, “onde
   fui amarrar meu jegue.”
– ... 
– Melhor assim. Fica aí de papo pro ar, refrescando as miudezas e em
   silêncio, que é mais seguro.
– ...  
– Hummm. Assim que o vi, notei que você tinha o cérebro de um
   protozoário, mas agora, pelo menos, está parecendo... sei lá...
   gostosão. Tem bicho que tem barriga, mas isso aí é um
   abdômen! Qual academia você frequenta? Pilates, acertei?
– Barf barf.
– Não conheço esse método. Alemão? ... Bem, está ficando frio aqui
   dentro. Chega pra lá que eu vou me sentar bem pertinho de você...
   Assim... Pronto, viu? Agora, um aquece o outro e a gente vai se...
– Nhoc... Blurp... E viva a cadeia alimentar. Vamos ver quem vem lá.