domingo, 21 de março de 2010

Alianças

- Opa! Já te trago a maquininha. É débito ou crédito?

- Débito. Nunca se sabe o que acontece no mês que vem. O serviço já está incluso?

- Sim, muito obrigado... Adorei a sua bolsa.

[Adorei sua bolsa?!!] Meus olhos preconceituosos correram para sua mão, esperando ver sei lá o que. Encontraram uma aliança de noivado. Que papo gay! Mas agachado ao lado da minha cadeira, ele prosseguiu sereno, indiferente a minha investigação muda, as mãos falando tanto quanto a boca.

- Todo mundo diz que está em busca de sua individualidade, mas fica tentando ser igual aos demais. Se você pensar bem, hoje em dia, todas as bolsas são parecidas.

Ele divagava sobre formatos e tamanhos de artefatos de couro, mas as peças em si importavam pouco, milhas aquém de suas conjecturas. Era o Claude Lévi-Strauss da moda. Refletiu sobre essa angústia que, expressa em palavras, parece ferir a alma das pessoas, mas que desaparece nas ações. Ele entendia que, no fundo, todos buscam pertencer a algum grupo, qualquer grupo; e que sentir-se confortavelmente estranho aos demais não é para qualquer um.

Comentei que é discreta a separação entre esquisitice e transparência, honestidade, abertura – o que hoje chamam de atitude. E que o primeiro olhar é para as diferenças, muito mais do que para as semelhanças. Sua juventude dissipou-se em entendimento.

- Ah! Como a Lady Gaga. Quando ela apareceu, todos achavam que era estranha. Hoje, é aceita, pois age conforme a sua natureza. Por outro lado, a Madonna está exagerando, soa falso.

Com exemplos singelos, ele descrevia um mundo. Seus dedos tamborilavam na mesa, como se suas palavras demandassem mais credibilidade. O pouco movimento do restaurante permitia que ele continuasse ali abaixado, em reflexões. E ele ecoava essa mesma transparência que suas palavras rascunharam, expressando a leveza de sua alma.

Portando mais uma lição de vida na tal da bolsa, levantei-me para ir embora. Estendeu-me sua mão e, com ela, algum outro tipo de aliança. “Volte sempre.” Sua voz trazia mais do que uma despedida formal. “Meu nome é Rony.”

terça-feira, 16 de março de 2010

Trampolim

Agora, eu pulo.

Um salto perfeito, um daqueles bem difíceis que eu venho treinando há tanto tempo, cheio de volteios, um duplo mortal carpado e eu mergulhando quase sem espirrar água. Quando eu fizer aquele movimento com precisão, ao entrar de cabeça na água, todos vão soltar a respiração que vinham prendendo desde que eu saí graciosamente do trampolim e respirar aliviados e sorrir antes de explodir de emoção por ter visto o salto mais perfeito da história dos saltos ornamentais, é sim, e os juízes extasiados vão agitar os cartazes com a nota 10 e me carregar nos ombros até o Carro de Bombeiros para eu percorrer as ruas do centro da cidade envolta na bandeira, acenando para as multidões, e toda aquela serpentina voando como em final de Copa do Mundo com a música do Ayrton Senna tocando bem alto – tã tã tã, tã tã tã – e o chatão do Galvão Bueno berrando ÉéééduBrasiiiiiilllllll. Ah, eu vou extrair aplausos até dos pentelhos da 7ª B, daquelas colegas que riem de mim durante o treino, da babaca da minha prima Michele e da metida da tia Dalva que a inscreveu no curso de modelo e manequim (ai, meus sais!!); talvez até um Oh! do Olavo e um sorriso aprovador da minha mãe – aliás, se ela não sair daqui hoje dizendo que estou desperdiçando meu tempo precioso e o seu dinheiro precioso, já vai ser lucro, além de ser novidade absoluta, é sim.

Mas se eu fizer o primeiro movimento imperfeito, é certo que vou errar a pontaria, torcer o corpo para o lado invertido, dobrar as pernas, soltar o diafragma, dar mau jeito nas costas, urrar de dor em pleno ar, desmanchar esta merda de coque cheio de grampos que estão perfurando meu couro cabeludo e... e... e tomara que eu bata a cabeça na borda com muita força, é sim – se eu errar o primeiro movimento, vou mirar direto com a minha testa dura na beirada da piscina e acabar com tudo – com a risada das minhas muy-amigas, com a tontice da Michele e da tia Dalva, com o Oh! que nunca será pronunciado pelo Olavo e, é claro, com o olhar de desaprovação da minha mãe, que sempre vem acompanhado de um meneio de cabeça que esconde um “eu te avisei” e é seguido daquele mesmo velho e interminável discurso durante os quinhentos anos que demora para chegar daqui na droga da minha casa.

Pensando bem, se eu sair pelo menos com a cabeça sangrando e merecendo uma visita ao pronto-socorro e uns pontos, vai ter menos motivo para as risadinhas e os comentários cochichados; é sim, já vou mirar na beirada da piscina de cara – nem vou caprichar no pulo, pois eu sei que vou errar aquele primeiro movimento, sempre ele... isso mesmo, lá vou eu.