Ora, é porque a gente mora numa terra cheia de brasileiros que falam a língua portuguesa, calculam com algarismos arábicos, adotam o alfabeto romano e o sistema métrico decimal. É porque a nossa música mais popular descende de uma fusão entre a valsa vienense e o lundu africano. Também porque nossa culinária é – com o perdão do trocadilho – um caldeirão salpicado pelos seis continentes. E nosso dicionário é sempre mais grosso que os demais. Inesperado seria esse povo viver seco de criatividade. Isso nunca! Não um povo que abrange Stanislaw Ponte Preta, capaz de versos como
“...E foi proclamada a escravidão / Assim se conta essa história / Que é dos dois a maior glória / Dona Leopoldina virou trem / E D. Pedro é uma estação também / O, ô , ô, ô, ô, ô / O trem tá atrasado ou já passou”. Mas contenha a emoção, cara Noemi. Tem mais. Sempre tem mais.
Historicamente, os compositores brasileiros adoram fundir letra e música sem jamais economizar no verbo. Ary Barroso já nos brindou com
“meu mulato inzoneiro”. Talvez o tal mulato tivesse preguiça, estivesse zonzo ou uma mosca da malária rodeasse sua orelha. Mas que importa a minúcia na descrição do pobre diabo? Ary tentava exprimir seu amor por um povo e uma nação. De fato, nunca haveria palavra que bastasse. E a Aquarela se perpetuou, inzoneira e tudo. Não me venha com Jakobson e a teoria de que isso tem função explicativa. Isso é onomatopéia!
Aí, veio o Ataulfo Alves, dizendo à pobre mulata assanhada que a pretoria resolvia a questão. Altamente preconceituoso. Em tempos mais contemporâneos, o incauto compositor sempre teria a chance de corrigir o termo para “
afrodescendentía”, embora houvesse espaço para a defesa, parafraseando Drummond e afirmando que isso não seria rima, seria solução. Muitos certamente iam concordar.
Mas Ary Barroso voltava à carga em Camisa Amarela, afirmando que
“Depois o encontrei num café zurrapa do Largo da Lapa”. A gente fica com a sensação de que o lugar não devia ser luxuoso. Talvez um ambiente mais singelo e pouco frequentado por pessoas que tivessem família. Buscamos o resto da estrofe, desesperados por algum entendimento. E ele vem.
“Folião de raça bebendo o quinto copo de cachaça”. Não, de fato não era luxuoso. Mas a estrofe se arremessa na redundância de um breque:
“Isso não é chalaça!”. Ah, bom, agora tudo se esclareceu: a culpa é do Torero.
Nem Arnaldo Antunes escapou.
“Peste bubônica/ Câncer, pneumonia / Raiva, rubéola / Tuberculose e anemia / Rancor, cisticircose/ Caxumba, difteria/ Encefalite, faringite/ Gripe e leucemia...”. Como que por milagre, o pulso ainda pulsa. Mas eu estou pegando uma... uma... hipocondria.
Com o samba do crioulo doido regulamentado, desta vez sem trocadilhos rudes, Gil tinha carta branca para pegar a emblemática “Pelo Telefone” e compor versos como “
Um barco que veleje / Que veleje nesse infomar / Que aproveite a vazante da infomaré / Que leve um oriki do meu orixá/ Ao porto de um disquete de um micro em Taipé...”
Por mais que isso seja deliciosamente contraventor, tudo sempre podia piorar. Quem manda ter tantas palavras e tão poucos professores de oratória? Ou otorrinolaringologistas? Há casos em que a gente não entende o que o intérprete diz, fato que pode gerar neologismos ou uma confusão dos diabos. Como quando um amigo insistiu que o mesmo Gilberto Gil compusera
“Sapo butimilho é gente, o sol nascente é tão belo/ Sítio do Picapau Amarelo”. Ou eu mesma, crente que, em “Como nossos pais”, Elis Regina cantava
“mas é você que é malpassado e que não vê que o novo sempre vem”.
Com tudo isso, como não me apaixonar pelo Chico que, sócio-cotista da língua pátria, ainda faz um mexidão com o francês,
“Mata-me de rir, Fala-me de amor / Songes et mensonges Sei de longe e sei de cor / Geme de prazer e de pavor / Já é madrugada / Acorda, acorda, acorda, acord'accord”.
Acorda, amor!
* s. m. 1. Vício de pronúncia que consiste na omissão de fonemas. 2. Impossibilidade mórbida de expressar as idéias com sentido
** adj. Cheio de saliências, depressões ou sinuosidades irregulares