A cena começa com um homossexual assumido, sentado em um boudoir com mais dourados do que recomendam as revistas de decoração. E plumas, vermelhos, almofadas, franjas. O ambiente recebe luz indireta e vêem-se vidros de cristal sobre um aparador e uma penteadeira em estilo francês usada como bar, emoldurada por um grande espelho bisoté. Na parede do fundo, uma montagem com nove fotos do rosto dele em cores cítricas à Andy Warhol. Mireille Mathieu canta baixinho; depois dela, virão Edith Piaf, Jacques Brel e Nina Simone.
Aconchegado numa chaise, veste roupas de tecidos leves enquanto aguarda a chegada de um amigo para o chá. Tem anéis de ouro nos dedos e calça chinelas de seda. Na mesinha ao seu lado, uma foto emoldurada da mãe. Sobre a mesa de centro, uma bandeja onde se vêem duas xícaras, um bule coberto por um abafador indiano, saquinhos de adoçante, um potinho de porcelana com cubinhos de açúcar e um prato com delicados petit-fours. Ah, e um livro de Robert Mapplethorpe.
O amigo entra esbaforido, abrindo a porta de forma dramática. Veste camiseta branca básica, jeans de marca e tênis casuais com detalhes fashion.
- Bi, tô vindo do petshop. Olha só! Fiz as unhas, hidratação no cabelo e uma tinturinha, que ninguém é de ferro, não é moamorr?
- Esse tom ficou lindo. E vai combinar super com sua roupa, quando você for ferver à noite.
- E você não vai?
O anfitrião serve o chá para ambos, enquanto o visitante brinca, divertido.
- Como dizia minha amiga Christine Yufon, para segurar a xícara, são dois em pinça e três em leque.
O anfitrião olha para os lados, prestes a revelar um segredo.
- Encontrei aquele bofescândalo hoje na Benedito Calixto. Acho que vamos nos ver mais tarde.
- Mas você não vai partir pra cima dele, né? Bicha burra nasce morta. Acho uó.
- Ai, me erra, Laleska.
Incomodado com o rumo da conversa, o anfitrião muda de assunto.
- Olha o livro que eu comprei. Mapplethorpe, superhype.
- Bem, você sabe que eu adoro ler, mas não livros.
Sorri, faceiro. O outro gargalha alto, apoiando os dedos de leve no pescoço, como se sobre um colar de pérolas.
- E o que você lê, bagaceira? Cartaz de “Procurado vivo ou morto”? Preço off em liquidação na Louis Vuitton?
- Ai, desaqüenda, mona. Vamos ver o tal livro superhype... (um longo silêncio)... Aaaai, meus sais! Me deixa olhar com calma.
A cada página virada lentamente, um suspiro e um comentário.
- Mmmmm, não, muito fraquinho. Alôca.
- Babado confusão.
- Ah, este aqui, eu faria. A Bete faria!
- Ai, tô passado!
A campainha soa, tirando os dois amigos do enlevo. Um poodle tosado segue aflito em direção à porta da frente. O dono da casa ralha com ele:
- Calma, Giorgio. Papai vai atender.
Entra uma mulher, meia-idade, divorciada, deprimida e que se define como sanguínea. É a vizinha, que ouviu vozes e tocou em busca de companhia. Veste bermudas e uma camiseta onde parece ter respingado água sanitária. Arrasta atrás de si um leve aroma de cebola. Abraça o anfitrião longamente.
- Ai, meu amigo. Que bom te ver. Eu te amo tanto.
Segura o rosto dele com as mãos em taça enquanto sorri triste.
- Você tá tão lindo...
Seu rosto, emoldurado por cabelos desgrenhados, as raízes embranquecendo e sem maquiagem, fica ainda mais acabrunhado.
Abraça-o mais uma vez. Afetuoso, ele a convida a se sentar e vai para a cozinha em busca de mais uma xícara, seguido pelo alegre cãozinho engravatado.
Ela estende uma mão débil para o visitante e se apresenta. Permanece assim por tempo demais e, ainda sustentando a mão dele, diz que sentiu uma vibração.
- Você é uma pessoa linda. Posso sentir isso só te tocando. Sua alma é luminosa e seu caráter virtuoso... Er, eu sou sensitiva, entende? Desculpe se eu fui muito afoita.
O outro logo se interessa e, quando o anfitrião retorna, ela já se aprofundou em detalhes das dificuldades que ele experimentou na vida, de sua determinação para ser feliz e do futuro especial que o aguarda. Ele está encantado.
- Ai, bi. Somos BFF. Amigas para sempre!
- Oh, posso te dar um abraço? É esse impulso que me veio quando toquei sua mão. Às vezes, sinto necessidade de abraçar as pessoas.
Eles se enlaçam enquanto ela prossegue.
- Acho que eu te amo muito. Eu sinto isso.
O telefone dela toca. É o ex. Algo sobre um depósito que ela pediu a ele e ainda não foi feito. Ela fica em longos silêncios e responde por monossílabos. Lá pelas tantas,
- Mas querido... eu sei... tem razão... É, É, É QUE EU AINDA TE AMO. VOCÊ ENTENDE ISSO? Sabe o que eu estou passando? Me ouve! Eu-ain-da-te-amo. Entendeu agora?
Desliga o telefone e desaba no sofá. Alguém lhe oferece um lenço de cambraia. O anfitrião vai até o toucador feito em bar e traz um copo baixo com whiskey e algumas pedras de um gelo que milagrosamente estava ali em cima há horas, sem derreter. Abatida, ela recusa e culpa os remédios.
- Ai, que bas-fond.
- Babado fortíssimo. (mais um longo silêncio) Mas você precisa reagir, mulher! Você é uma leoa. Tem a coragem dentro de si. Vai dar a volta por cima. É cabeça erguida. Bofe nenhum vai te derrubar. E vamos dar um jeito nesse seu cabelo, que está uó. Você não quer ser vista assim, não é, moamorrr?
- É isso mesmo. Tá parecendo uma bolacha** caminhoneira, mas com uns retoques, vai ficar uma luxa. Se joga! Ai, e troca essa música, naja. Vamos ouvir algo mais up.
- Que tal Gloria Gaynor?
Jovial, o visitante bate palmas! E passa a agitar os braços e cantar junto com o disco, tentando mandar uma mensagem para a mulher.
- I am what I am / and what I am needs no excuses…
Ela enxuga as lágrimas, faz biquinho e diz:
- Eu amo vocês!
**lésbica
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